Blogue do Maranganha

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A terrível beleza da natureza implacável

Bastou um olhar pela janela mais cedo. Bastou isso e uma cena sublime virou fada arretinada. Era um gato, daqueles meio cinzentos com listras escuras, andando devagar no telhado do vizinho. Nada demais, eu gosto de gatos, mas sempre achei os de rua muito ariscos e medrosos. Mas ele estava em posição de caça, e prendeu a respiração. À sua frente, uma andorinha. Parecia ter quebrado a asa, ou algo do tipo. Ele saltou, abocanhando sua vítima tão rápido quanto os sonhos. Curti a conexão com os encantos galáticos a cada membro dilacerado do pássaro. O felino desfazia a fome, e eu observador me prodigiava e esmagava minha relevância diante dessa realidade. Qualquer passo que eu omita, cada arfada de ar que amargue, cada coisa que como, cada som que emudeça para que me mantenha vivo, cada dor que apeteça, cada vez que me achego na morte, cada angústia, lágrima e grito, sou eu devolvendo vida.

Pode parecer pura aridez, mas isso não é. É belo! Dor e prazer, fome e nutrição, nascimento e morte, tudo está tão intimamente interligado que não dá para viver fora de nenhum ciclo. O pássaro era eu. O gato era eu. Eu sou o que mata. Eu sou o que morre. Isso sim é belo. Ao ver a morte e a vida diante de meus olhos, não pude deixar de ter empatia por ambos, gato e andorinha.

E olhei para cima. Vi nuvens. Sim! As nuvens! São o exemplo atordoante de impermanência das coisas. Como eu disse antes em um poema, “o céu todim é um quadro mergulhado no solvente”. Seu destino é desfazer-se e refazer-se sempre. Seu pintor é a própria arte do agora. Não há quadros eternos no céu.

Quando vi o gato comendo o pássaro, não pude deixar de lembrar do fígado que comi ontem, do hambúrguer que degluti esses dias, do alface, do cogumelo. Eu sou vida, devoro vidas e alimento vidas. Sem mim, vidas morrem. Por mim, vidas morrem. Tal vínculo não pode ser desfeito. Duvida? Pesquise, e descubra como o corpo humano putrifica, e entenderá a intimidade que temos.

O planeta também está num ciclo áspero. Eu e toda a vida que vive sobre o planeta somos produtos de estrelas que precisaram morrer. Cada estrela antiga era feita de hidrogênio e hélio, que se fundem em elementos mais gordos. A morte de uma estrela libera elementos mais complexos, sem os quais não estaríamos aqui. A pressão e o calor vultosos do núcleo de uma estrela transformaram hélio e hidrogênio em carbono e oxigênio. Sem o estertor de uma estrela, explosão assassina de mundos, não haveria o Sol, nosso mundo ou os ingredientes que nos fazem vivos.

Sem a morte de outras estrelas não existiriam planetas. Sem a dor moribunda de uma antepassada de nosso Sol, não teríamos gatos, nem andorinhas, nem vacas, nem alfaces, nem cogumelos. Sem o brilho eclipsal de outro astro, não estaríamos aqui pra ler sobre astros natalinos, revolução proletária ou discutir o gênero do presidente. Não teríamos veganismo, nem guerras, nem Era de Aquário. Não, não estaríamos neste ciclo. Mas estaríamos em outro.

Um dia estivemos todos em um ponto. Aquele cara que você odeia, a vaca que você come, o alface que você planta, a pessoa que você estima. Todos um dia estavam comprimidos em um espaço menor que um átomo. Um dia dividimos espaço com o alienígena hostil do outro lado do universo, com a singularidade do buraco negro longínquo, com a galáxia mais distante de nós que existir. Faz nem poucos bilhares de anos, e o que um dia seríamos brincava de presente eterno com o que um dia seria Adolf Hitler, as fezes de um prisioneiro, a luz de uma estrela, Elvis Presley, o tempo. Sim! Um dia fomos todos um. Nossa separação é uma ilusão sem graça.

E um dia nossa estrela vai morrer, e seremos exterminados, voltaremos às estrelas como poeira e gás. Após a última trombeta vaguearemos por aí, sendo inalados por buracos-negros, nos instalando em nuvens pra formar outros sistemas, passeando em vazios intermináveis. Um dia estaremos eternamente juntos na mesma sina, eu, o gato, a andorinha, Hitler e você.

Um dia, o tempo se rasgará em uma força descomunal, e o espaço será esmagado pelos estandartes do Apocalipse. O abrir do último selo e o derramar da última taça selarão eternamente a existência desse universo. Mas quem disse que acabou? Outros universos virão, o vazio entre eles levará nosso legado. Os deuses estarão nas coisas que não existem. Eles estarão em casa, e nós lá com eles, em forma de energia, em forma de vibração, em forma de algo que passou de cá pra lá. Não existe uma apoteose, trombetas de anunciação, tapetes vermelhos nem nada do tipo. Não, existem apenas regêneses, uma ínfima consciência que se apaga para abraçar o vasto dos seres. E assim entro em lucidez, termino meus pensamentos em podridão, sabendo que tudo não passa de juízo vago e ego.

Gassho
合掌

Um comentário em “A terrível beleza da natureza implacável

  1. AntimidiaBlog
    26 de dezembro de 2016

    Republicou isso em REBLOGADOR.

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Informação

Publicado em 25 de dezembro de 2016 por em Analogia, Crônicas, Fluxo da consciência, Poesia, Prosa Poética.