Blogue do Maranganha

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O verdadeiro Budismo é desonroso

A honra é um título informal conferido às pessoas por causa da reputação. Um homem honrado não é um homem ético, mas um homem que é reconhecido como tal. Por isso que, dentro do Budismo, a honra soa como uma atitude estranha, sansárica, quase como um empecilho à iluminação. Contarei uma historinha bem breve pra ilustrar isso.

Mais de uma década atrás, conversando com um colega de graduação, fiquei sabendo que o irmão dele tinha sido confundido pelos policiais com um pedófilo. Chamarei ele de Carlos. Carlos era funcionário do conselho tutelar, tinha umas paqueras, uma ex estava grávida dele e ele já tinha assumido, tinha acabado de terminar um curso e estava procurando emprego. Conselhos eram pedidos a ele. Tudo o que ele devia, todos sabiam que pagaria. Era reconhecido como honrado.

Mas Carlos estava num bar em Salvador e do nada a polícia pega ele, põe na viatura, já acusando-o, batendo nele e falando alto pra todos ali ouvirem. Mesmo sob argumento contrário, incluindo testemunhas, ele foi fichado e colocaram numa cela junto com outros bandidos. Ainda levou uma surra e perdeu um dente.

No dia seguinte, o libertaram, dizendo que o verdadeiro acusado havia sido pego na cidade vizinha, que apenas a descrição do rosto batia. Depois de um mês se recuperando, e consertando o dente, a própria família passou a olhar pra ele desconfiado, criando narrativas próprias para a simples atenção de adulto que ele dava às crianças da família. As paqueras começaram a rarear até o ponto de desaparecer. Sua ex abortou a criança só pela raiva quando ouviu história contada pelas amigas. Propostas de emprego diminuíram, e ele foi demitido do conselho tutelar.

A polícia? Ela só pediu desculpas e liberou. Só isso. Sem tentar uma reparação de danos. Sem preocupação em provar que ele não era pedófilo. Pra a polícia, ele parecia um retrato falado, foi preso, apanhou, não era e foi solto. Só isso.

O retorno de Carlos deu início a um segundo capítulo nesse sofrimento. As pessoas passaram a se afastar dele. Sua honra foi manchada, sua vida quase toda foi prejudicada. Numa sociedade como a nossa, em que a reputação, o que dizem a nosso respeito, vale mais que nossas ações imediatas, a desonra é a pior coisa que pode acontecer a uma pessoa. Isso se tivermos sorte de sobreviver. Alguns são simplesmente linchados na rua, muitas vezes só por serem confundidos com outras pessoas. Ele, no caso, entrou em depressão e quase se matou. Tentou processar a polícia, mas em oito anos o processo não andou um único centímetro. Recentemente, segundo o irmão, Carlos se mudou para a Espanha (na verdade, foi outro país), e a vida dele começou a mudar para a melhor finalmente. Trabalha, arranjou uma namorada, teve um filho e está agora terminando uma especialização. E tudo isso por causa de um mal-entendido da polícia para o qual as pessoas que o conheciam não foram sensíveis nem compreensivas para levar em conta.

A polícia, no meu argumento aqui, tem o mesmo poder de um furacão que derruba uma casa, é uma força externa, incontrolável. Estou falando aqui de forças internas, motivações, aquilo que podemos observar em nós mesmos. Algo que é exercitado em diversas técnicas de meditação como o vipassana, o zazen e o daimoku.

Internamente é que o trabalho de lidar com o sansara fica mais intenso. O povo não quer saber se Lula roubou, querem é que ele seja preso porque alguém disse que roubou. Prova-se que está limpo, mas na sua cabeça ele já está sujo, e por isso não pode mais se defender. Se ele estiver realmente sujo, os que o defendem já o verão como limpo, e não haverá como tirar isso de suas cabeças. O que interessa é nossa preguiça sansárica, e nada mais que isso. O sansara é o senhorio de cada merda que acontece nas nossas vidas, entenda isso.

Para o povo, religiões afro já praticam sacrifícios humanos, Dilma já é incompetente, o padre já é abusador, a moça da frente já é traideira, o dono do bar já é velhaco, e por aí vai. Para as pessoas, os outros já são por antecedência o que falam sobre eles, e isso interfere na nossa relação com eles, faz com que a gente aja de acordo com a informação, e essas ações criam uma “comprovação” do que foi dito. No microcosmos, seu vizinho nunca bateu na mulher, mas você está tão condicionado a achar que ele bate por causa de uma fofoca que todos os atos que você observar passarão pelo filtro da sua crença prévia. Você já interpreta que ele bate, e algumas ações que, caso sua crença fosse outra, diriam o oposto, são entendidas de acordo com a informação de que ele é violento em casa. Talvez você perca uma oportunidade de conhecer uma pessoa massa por causa de uma hipótese. Porém, se você acha que ele é uma boa pessoa com antecedência, e ele de fato bater na mulher, mesmo as provas mais irrefutáveis serão difíceis de te convencer, pois seus atos já serão interpretados de outra forma.

Por isso suspeito do Budismo de budistas que comemoram a condenação de uma pessoa comprovadamente honesta pelas mãos de pessoas comprovadamente desonestas. A julgam desonesta pelas informações que receberam de gente desonesta, não por dados reais e cuidadosamente estudados. Não foram racionais, nem criteriosos, foram pré-interpretativos, algo que o Budismo não aceita. Estamos tão condicionados a achar que a pessoa honesta roubou ou que não roubou que todos os seus atos deixam de ser verificados e passam a ser interpretados de acordo com a crença anterior que já construímos sobre ela.

É o mesmo que fazem os estereótipos: ao ver um negro na rua, você já está tão condicionado pela cultura, pela mídia, pelo sistema educacional e pela criação de que negros são assaltantes que, inconscientemente, cria manobras defensivas pra quando ele se aproximar. Não mentirei, por causa da minha criação eu, mesmo sem perceber, ajo assim quando vejo um negro andando na rua perto de mim. Não, isso não justifica, tanto que me corrijo sempre que me percebo. O racismo é um desses condicionamentos que, quando são internalizados desde muito cedo, temos mais dificuldade de nos livrar. É a reputação de toda uma etnia que foi manchada.

É o mesmo que aquele seu ex-colega de trabalho que tinha a fama de ser mesquinho e traiçoeiro. Ele agia assim às vezes, e você já foi inclusive uma de suas vítimas. Dez anos depois você o encontra, e ele admite verbalmente e abertamente que já foi assim mas que não é mais. Mas você está condicionado por aquele cara de dez anos atrás, e não pela possibilidade de ele ser diferente hoje. Talvez você deva ir com calma, observar bem o terreno, mas o que garante que ele não mudou de verdade?

A crença prévia gera um filtro. Já condena e absolve as pessoas por antecipação. E isso é perigoso, pois pode condenar inocentes e absolver culpados só porque a gente já tem essa ideia a respeito deles. Tenhamos cuidado com os condicionamentos sociais. As reputações podem ser manchadas por um minuto de mal-entendidos, ou por séculos de dominação, mas as reputações são o resultado de um árduo trabalho. Mesmo assim, a honra é crer que um fator externo (o que pensam a seu respeito) pode ser controlado. E, vai a má notícia, não pode. Nem o Buda escapou disso. Um cara já bateu nele por causa de boato, e ele tinha consciência disso.

No Budismo há um conceito interessante sobre isso. É o princípio de impermanência. É praticamente um soco no estômago em relação a tudo, inclusive a honra. Não adianta você passar décadas construindo uma fama e nunca errar se, por algum momento, ela ficará manchada (lembra-se de Ned Stark, em Game of Thrones?). E quando for manchada, requererá mais um árduo trabalho para limpar. Isso cria uma responsabilidade sobre a pessoa que foi prejudicada por uma falsa denúncia. Ela deve ser sempre boa e ética, e não para ser assim reconhecida por todos e construir sua honra, mas porque é o certo a se fazer. Eu não devo estuprar, e não pra ser reconhecido como um homem que não estupra, mas porque isso é o certo a se fazer e ponto final. Se alguma denúncia falsa for feita contra mim, não será meu ser que mudou (algo que posso controlar), mas a visão das pessoas a meu respeito (algo fora do meu controle). Eu continuarei não estuprando, continuarei fazendo o certo, mesmo que todos à minha volta achem o contrário.

Isso também cria uma responsabilidade para cada um de nós sobre informações que vêm de outras pessoa, a maioria só boatos. Sempre investigue, sempre observe, a sempre revise as evidências que provem ou desmintam um fato.

As pessoas em nossa volta não são elas de verdade, mas apenas ideias que temos sobre elas. Lembre-se que você não as vivencia o tempo todo. No máximo temos uns poucos minutos por pessoa, o que nos leva a vivenciar apenas suas ações quando em situações específicas. Nunca vamos vivenciar as pessoas de verdade porque estamos blindados atrás de estereótipos, de interpretações e de crenças prévias sobre as pessoas. Eu nunca vou me aproximar do meu colega de trabalho porque já acho que ele é um branco racista. Talvez, se eu abandonar a máscara, eu descubra se ele é realmente racista e, se não for, terei a chance de conhecer uma pessoa incrível por trás do muro que eu mesmo construí em torno dele.

Enfim, ser budista é ver o mundo atrás da falácia chamada honra. Por isso eu disse que é desonroso, pois o praticante precisa estar acima disso. Não tem de construir uma reputação de bodisatva, mas apenas agir como um, ou tentar. No zen se pede que experienciemos seres humanos sempre como se fosse a primeira vez, pois a pessoa que era ontem não é a mesma que é hoje. Morremos todos os dias, e renascemos como alguém diferente. Nem uma pedra é sempre a mesma, nem um pedaço de ferro ou uma árvore. Mudamos, o tempo todo. Pessoas, famas, opiniões, atos, essências, tudo muda. Tudo.

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Informação

Publicado em 19 de junho de 2016 por em Analogia, Relato pessoal.